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Crónicas de uma administrativa ou Manual incompleto para tempos pandémico-bélicos


 

 

Começar a trabalhar numa empresa de prestação de serviços pedagógicos em tempos pandémicos ajuda a ver as pessoas e os seus coping mechanisms. Simplificando, trabalhar em atendimento ao público numa altura em que apenas conseguimos ver os olhos das pessoas a sobressaírem apesar das máscaras é um bom empurrão para um estudo sociológico. Os tempos moldam-nos – alguém já disse isto no passado – e a vida pós-confinamentos é diferente dos bons anos de 2018 e 2019, limiares de tempos desafiantes. Como temos uma tendência para a nostalgia, as frases que mais ouvi em quase dois anos de trabalho na Triplo S são intrinsecamente portuguesas – vai-se andando, cá estamos!, está tudo lento agora…, até amanhã se deus quiser. E esta condicional, este “se” tornou-se uma nova forma de viver; se antes as variantes eram às dezenas, agora são o dobro, e da noite para o dia as notícias são outras, as estatísticas são outras, mas soluções crescem tanto em número como os problemas. Trabalhar e resolver problemas numa conjuntura em que ver as notícias na televisão podem ser uma causa de sintomas depressivos dá-nos aquilo que em bom português chamamos “calo” ou “tarimba”. Uma espécie de genica, um jogo de cintura mental em que passamos de um desesperado “vai tudo ao charco” para um mais sensato “vamos lá resolver isto”. Resolver, organizar, reestruturar andaram todos de mãos dadas neste tempo todo. Não sabemos se é devido a uma espécie de genética cultural (Portugal e o seu conhecido desenrascanço) ou se, de facto, os tempos nos obrigaram a ser criativos nas soluções. Talvez tenhamos um pouco das duas coisas. Mais fácil é torcer o nariz e baixar os braços, mas a descer todos os santos ajudam e nas subidas vamos esperar que eles nos empurrem? Nada cai do céu, e agora infelizmente, só se for mesmo uma bomba. A verdade é que, na face dos problemas, tudo parece momentaneamente impossível de ser solucionado e dá vontade de expressar justamente esse cansaço perante as adversidades. Mas no teatro ensinaram-se que, ainda que te esqueças das falas ou das movimentações cénicas, não saias de personagem. Mantém, mantém e mantém, até porque o público desconhece o texto integral e todo o desenho da encenação. E segue com a peça e arranja soluções entretanto. Improviso no meio da encenação, desenrasque no meio do que estava instaurado. Foi isso que 2020 e 2021 nos ensinaram e que 2022 continua a ensinar – como conhecer atalhos por entre as ruas caóticas que de um dia para o outro estão cheias de buracos, obras e carros acidentados. Por onde quer que se vá, o que importa é a viagem. A meta é necessária, mas sobrevalorizada – a forma como viajamos diz mais de nós. A forma como chegamos do ponto A ao ponto B revela mais sobre as nossas fortalezas mentais do que os troféus no final. E isto agora podia ser retirado de um livro de auto-ajuda que ninguém compra e que está com um desconto de 50% numa qualquer livraria perto de si . Felizmente, mesmo em tempos exasperantes podemos fazer piadas, sobre nós próprios e sobre as pessoas. Dar um pouco de leveza à estranheza, incluir, acolher, e continuar a peça mesmo que o público desconheça o suor dos actores.

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